Entre o sagrado e o pop: artista de Petrolina, Julio Azêvedo transforma o Sertão em universo fantástico na série 'Nordeste Onírico'
Julio Azêvedo transforma o Sertão de PE em universo fantástico na série 'Nordeste Onírico' Por trás das linhas que desenham vaqueiros heroicos, santas lum...
Julio Azêvedo transforma o Sertão de PE em universo fantástico na série 'Nordeste Onírico' Por trás das linhas que desenham vaqueiros heroicos, santas luminosas e coronéis imponentes, há um traço de introspecção e afeto. Um gesto de quem, desde menino, buscava companhia no lápis e no papel. É assim que nasce o universo de Julio Azêvedo, artista e designer de 26 anos, natural de Petrolina, no Sertão de Pernambuco, que assina suas obras como jinohul, um anagrama de “Julinho”, apelido de infância que agora se desdobra em identidade artística. Artista de Petrolina, Julio Azêvedo transforma o sertão em universo fantástico na série 'Nordeste Onírico' Divulgação/Redes Sociais A série “Nordeste Onírico”, responsável por lhe render o Silver Award no LADAwards, um dos mais prestigiados prêmios de design da América Latina, é uma viagem entre o sagrado e o pop. Nela, Julio imagina arquétipos sertanejos: vaqueiros, coronéis, santas, brincantes, repentistas, como personagens de anime japonês, envoltos em cores vibrantes que rompem a paleta terrosa comumente associada à caatinga. “Gosto de me desafiar. Quando me inscrevi, foi mais como um teste, uma meta para me motivar. Minha carreira ainda é recente, então receber o prêmio foi algo fora de qualquer expectativa. A indicação já tinha sido uma vitória, mas ganhar mostrou que meu trabalho autoral e regional tem espaço, e que ele pode dialogar de igual para igual com o que é produzido em grandes centros.” Caboclo e o sertão que não se apaga O sertão que inspira Julio tem nome e memória: Caboclo, um povoado de Afrânio, quase na divisa com o Piauí, onde estão suas raízes familiares. Ali, entre casas coloridas e histórias contadas na varanda, ele descobriu que o tempo pode ser lento e, justamente por isso, generoso com as lembranças. “Caboclo é o povoado originário da minha família. Eu ia muito quando criança, e no começo não entendia muito bem. Mas, à medida que fui crescendo, percebi que aquele lugar era minha história. Lá tudo permanece: as casas, as histórias, as pessoas. É um lugar que resiste ao tempo, e essa resistência é uma chama coletiva que todos ali ajudam a manter acesa.” O sertão que inspira Julio tem nome e memória: Caboclo, um povoado de Afrânio Arquivo pessoal Essa ligação afetiva se tornou também tema acadêmico. Durante a faculdade de Arquitetura na UFRN, Julio escolheu Caboclo como objeto do seu trabalho de conclusão de curso. “Eu queria fazer algo importante para mim, mas que também tivesse impacto real na vida das pessoas. Percebi o quanto era escassa a documentação sobre o povoado. A partir do momento em que a história oral se rompe, tudo pode se perder. Então, registrar Caboclo foi também uma forma de preservar esse pedaço da nossa cultura.” O primeiro personagem criado para “Nordeste Onírico” foi o Vaqueiro, figura que encarna a força e a solidão de quem desbrava as veredas. A inspiração veio, curiosamente, de uma leitura de ficção científica. O primeiro personagem criado para “Nordeste Onírico” foi o Vaqueiro Divulgação/Redes Sociais “Estava viciado em ‘Duna’, do Frank Herbert, especialmente nas adaptações do Denis Villeneuve. A imagem do homem caminhando pelas dunas áridas me levou ao vaqueiro nordestino. Depois veio a sacerdotisa, que mais tarde virou a Nossa Senhora. A partir dali, percebi que estava criando algo maior, um universo inteiro.” Com viagem entre o sagrado e o pop, “Nordeste Onírico” conquista um dos mais prestigiados prêmios de design da América Latina Divulgação/Redes Sociais Vieram então o Coronel e o Conta-Contos, personagem plural que sintetiza o espírito da série: “Ele representa a cultura nordestina em sua forma mais plural. Pode ser cordelista, repentista, caboclo de lança. Todas essas manifestações têm o mesmo propósito, manter viva a chama da nossa história”. Conta-Contos compõe o universo “Nordeste Onírico”, premiado no Silver Award no LADAwards Divulgação/Redes Sociais Julio descreve o “Nordeste Onírico” como uma “intensificação” dos misticismos e das manifestações culturais sertanejas. E, nesse processo, as cores têm papel fundamental. Quem olha para as obras, não deixa de perceber a explosão de cores em cada detalhe. “Acredito que a arte precisa capturar o olhar antes mesmo de ser compreendida. O sertão é vibrante, colorido, cheio de vida, e eu quis mostrar isso. Caboclo, por exemplo, tem casas coloniais azuis com rosa, verdes com laranja, amarelas com roxo. A alegria e o calor também fazem parte da nossa identidade visual.” Julio nasceu em Petrolina, mas viveu boa parte da vida entre Recife, Mossoró e Natal, cidades que moldaram sua percepção de um Nordeste diverso e multifacetado. “Ir de Pernambuco para o Rio Grande do Norte foi como mudar de país. As gírias, a comida, as festas, tudo muda, e é isso que torna nossa cultura tão rica. Temos pilares que nos unem, mas também nuances que nos fazem únicos.” Durante a infância, passou longos períodos sozinho, mas nunca solitário. “Cresci sozinho até os dez anos, quando ganhei um irmão. Nesse tempo, o desenho era minha companhia. Eu passava horas inventando personagens, cenários, histórias. Desde cedo dizia que queria ser pintor.” A escolha pela Arquitetura veio da paixão pela técnica do desenho, mas o curso acabou ampliando o olhar de Julio sobre o impacto das formas e das intenções. A Arquitetura o ensinou a pensar no significado das coisas. "Na disposição de um sofá, você muda a forma como alguém vive um espaço. Levei isso para o desenho, o que cada traço faz sentir, o que provoca em quem olha. Gosto de obras que transformam, que tocam". Hoje, vivendo em São Paulo, Julio concilia o trabalho com design e arquitetura com a atuação artística sob a assinatura Jinohul. “No design, preciso ser preciso e técnico; como ilustrador, posso extravasar minha criatividade. As duas coisas se complementam.” Julio cria quase todas as suas ilustrações de forma digital, usando o iPad como extensão da mente. “Gosto da praticidade de poder carregar minha ferramenta comigo. O digital me permite transformar a obra em pôster, bandeira, estampa, camisa. Amplia o alcance da arte.” Ainda assim, ele quer se aventurar em suportes físicos, como cerâmica, pintura, escultura. “Quero aprender técnicas artesanais regionais e aplicá-las à minha visão. Meu objetivo é ser artista, não apenas desenhista ou pintor. Cada ideia pede um meio diferente, uma textura, um gesto, um toque.” No futuro, Julio sonha em expor o “Nordeste Onírico” em novas galerias, levando o sertão fantástico para além das telas. Ele já realizou uma exposição local no município Caboclo, um gesto simbólico de devolver ao lugar onde cresceu o universo que tanto o inspirou. Município de Caboclo, em Afrânio, ganhou exposição da série premiada “Nordeste Onírico” em agosto de 2025 Arquivo pessoal A exposição de Julio Azêvedo integrou a programação da Festa do Tamarindo, realizada nos dias 6 e 7 de setembro. A edição da festa também contou com uma homenagem póstuma ao seu idealizador, Cosme Cavalcanti. Um visionário e incentivador da preservação dos costumes e tradições do povoado do Caboclo. “O apoio que recebi mostra o quanto ficamos orgulhosos de nos enxergar. O sertanejo pode ser típico, e isso é lindo, mas também pode ser contemporâneo, pop e moderno. Quero continuar fazendo essa ponte, trazendo nossas histórias para o amanhã", destacou Julio Azêvedo. Vídeos: mais assistidos do Sertão de PE